Como eu vim parar no fim do mundo

Saiba por que este baiano trocou o calor da sua terra para passar frio no extremo sul do planeta — já ouviu falar de Ushuaia?

Hailton Andrade
4 min readOct 31, 2020

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Muito prazer, meu nome é Hailton Andrade. Sou baiano de Camaçari, tenho 31 anos, e há mais de três sou residente em Ushuaia, capital da província argentina de Tierra del Fuego e famosa como cidade do Fim do Mundo. Vim pela aventura e pelo dinheiro. Já fui embora e algum tipo de ímã me fez voltar. E agora não há motivo para desistir de ficar. Hoje em dia só vivo aventuras de vez em quando e o dinheiro já não é diferencial como há alguns anos. Há muito mais em jogo.

Para começar, vamos nos encontrar no mapa. Ushuaia era considerada a cidade mais ao austral do mundo até março de 2019 (atualmente a chilena Puerto Williams carrega o título). Ou seja, a cidade mais ao sul do mundo. Daí o apelido de Fim do Mundo. A província da Terra do Fogo, que seria equivalente a um Estado no Brasil, tem apenas três cidades: Rio Grande, Tolhuin e, finalmente, Ushuaia. É uma ilha de acesso limitado da Patagônia Argentina a “somente” mil quilômetros da Antártida. Mais de sete mil da minha terra natal.

Agora que já localizamos Ushuaia, chegue junto para escutar um pouco da minha história. Sou jornalista e, no início de 2017, tentava retomar minha carreira como repórter. Depois de viver um ano sabático viajando pelo mundo, percebi que as coisas não estavam fáceis pelas bandas de Salvador. Um freela aqui, um freela acolá, mas nada de trabalho fixo nesse meu retorno. A real é que nem eu sabia bem o que queria. Sabia que precisava de grana e estava buscando trabalhar com algo que já sabia fazer para viver.

Enquanto procurava trabalho, tocava projetos pessoais de casa e um deles foi um Instagram de viagens, o @euvimdabahia. Graças a esse pequeno projeto acabei conhecendo Ushuaia através de fotos na rede social e fiz amizade com um catarinense, o designer Guilherme Hoefelmann, que vivia na cidade e trabalhava em uma agência de turismo dedicada a atender o público brasileiro.

Guilherme me falou muitas coisas boas sobre a cidade e bastaram algumas imagens para me apaixonar pelo lugar. Era diferente de tudo o que eu havia visto. Decidi que assim que juntasse grana suficiente, compraria uma passagem para a cidade, na época, mais ao sul do mundo. Era aqui onde tentaria a vida. Pensei que isso aconteceria somente em junho do mesmo ano, mas acabei me mudando em março.

Sem nunca ter trabalhado com vendas ou no setor de turismo antes, me candidatei a uma vaga na agência. No meu currículo de jornalista, favoreci as informações sobre idiomas (já era fluente em inglês e espanhol, além de ter um básico de italiano) e contei algo das minhas experiências de viagem. Uma entrevista por Skype e pronto: havia conseguido um contrato por dois meses, cobrindo a ausência de um funcionário. Mas já sentia que ia ficar. Um freela como repórter no Carnaval de Salvador foi suficiente para pagar a passagem e o início da minha jornada pela Patagônia.

Eu sabia pouco de Ushuaia. Para ser sincero, nem quis buscar mais do que as fotos que já tinha visto. A ideia era ser surpreendido. Era como voltar à estrada para mim. Assim gostava de viajar e a aventura chamava. Só que dessa vez entraria uma grana inesperada. O salário era simplesmente três vezes maior do que o meu anterior como repórter. Migrar para Argentina também é fácil para brasileiros graças a um acordo bilateral feito entre os países.

Qualidade de vida e novos amigos fortaleceram o desejo de ficar. Os dois meses de emprego temporário na verdade acabaram sendo um trabalho estável, fixo. Bastou pisar na nova casa e recebi a notícia de que precisariam de alguém mesmo após o regresso do vendedor que estava desfrutando longas férias. Tudo deu certo. Acumulei grandes aprendizados. Sofri com a adaptação ao frio, mas passei pelo inverno mergulhado no trabalho.

Embora a experiência tivesse sido excelente, Ushuaia é uma cidade com muita gente em trânsito. Alguns ficam por dias, outros seis meses. No meu caso foi um ano. Decidi deixar a cidade. A intenção era escapar do inverno, mas também queria viajar. Mais do que isso, rever a família e estar na Bahia. E assim parti de mala e cuia para Camaçari-BA. Quando pisei no Brasil, vi de longe o peso argentino desvalorizar. O valor da moeda caiu pela metade.

No mesmo ano da despedida, 2018, ainda voltei a Ushuaia, onde estive uma semana. Mas dessa vez iria viver em outra cidade patagônica, El Bolsón. Estava apenas de passagem. Em 2019, retomei os trabalhos justamente na temporada de inverno e estou aqui desde então. Outro ano vivido nesse longínquo paraíso.

As aventuras seguem acontecendo nas trilhas, nos acampamentos, no snowboard e etc, mas por me sentir da terra, vejo tudo com muita naturalidade. O salário já não tem o mesmo valor de antes. A desvalorização da moeda foi constante nos últimos anos. Ainda assim, Ushuaia oferece qualidade de vida. Segurança, natureza incrível, amigos que se tornaram família. Estaria mentindo se não dissesse que não penso em voltar à Bahia, mas hoje eu sei que tenho dois lugares para chamar de casa.

As aventuras e o dinheiro de outrora me fizeram vir para cá. Hoje, há um conjunto de fatores que me fazem permanecer. Ushuaia sempre dá muito, mas muito de quem está aqui fica nessa terra. E, às vezes, a gente não quer se afastar dessa parte que deixamos no Fim do Mundo. E vai ficando, ficando… Até ser parte da terra também.

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Hailton Andrade

Jornalista e mochileiro. Fracassei ao tentar uma volta ao mundo e não lamento. Amarrei meus cadarços em 19 países e na Antártida. Moro no Fim do Mundo