A vida no extremo sul do planeta

Morar em Ushuaia, na Patagônia Argentina, tem suas facilidades e dificuldades, como em qualquer lugar do mundo

Hailton Andrade
4 min readNov 7, 2020

O fim do mundo é menos hostil do que se imagina. Tanto que em Ushuaia habitam mais 80 mil pessoas atualmente. Embora esta seja uma cidade localizada no extremo sul da Patagônia Argentina, estive em lugares muito mais inóspitos na região. Obviamente que as baixas temperaturas e a longa distância para os grandes centros fazem deste lugar algo pitoresco, mas isso não significa que a vida aqui seja totalmente diferente das cidades.

Diria que viver uma vida extrema aqui é opção. É possível buscar lugares menos convidativos e viver experiências extremas na grande Ilha da Terra do Fogo, mas na cidade de Ushuaia se leva uma vida bastante urbana. Carros, comércio, escolas, universidadades, indústria, cinemas, restaurantes, bares e shopping são algumas das coisas que tornam a principal porta da saída para a Antártida bem parecida com Camaçari, na Bahia, onde nasci. Óbvio que é só um exemplo. Provavelmente lembra também a cidade de muitos de vocês que lêem esse texto.

O slogan de “Fim do Mundo” faz todo sentido pela localização geográfica da cidade, servindo como ótimo chamariz turístico. Acho massa e inclusive reproduzo a marca de Ushuaia Fin del Mundo. Minha intenção com esse texto é apenas desmistificar alguns estereótipos. Uso como exemplo o próprio Brasil, que ainda é visto por muitos estrangeiros como uma grande selva (creiam!). Sem falar que nós brasileiros também reproduzimos uma visão distorcida de outros lugares do mundo, principalmente sobre o continente africano.

Me lembro bem que antes de vir morar aqui decidi não pesquisar muito sobre o lugar. A ideia era ser surpreendido, mas na minha cabeça já havia uma imagem estereotipada de Ushuaia. Pensei que vinha para um pequeno povoado e me deparei com uma cidade onde viviam cerca de 70 mil pessoas. A população segue crescendo. É preciso dizer que este lugar bastante especial para mim não é igual a todos os outros. Sim, vou ao super mercado, como fora, saio com amigos, curto um cinema (não na pandemia), mas também faço outras coisas que não fazia na minha terra natal e tive que me adaptar a forma de viver do fueguino, principalmente devido ao clima.

Isso sim é diferente

Nunca imaginaria que viveria ao lado de uma parte da Cordilheira dos Andes, cadeia de montanhas que corta a América do Sul. Cresci em uma cidade plana e, embora tenha morado em Salvador por dois anos não consecutivos, nunca subi tanta ladeira a pé. Talvez uma das coisas mais legais de morar aqui seja o fato de estar rodeado por montanhas e de frente para uma baía. Qualquer saída de casa é suficiente para dar aquela espiada, com olhares voltados principalmente para o Monte Olivia e o Monte Cinco Hermanos.

Na minha chegada, em 2017, vim preparado. Já havia sofrido com o frio em algumas viagens e dessa vez não deixaria faltar uma peça de roupa sequer, mas assim mesmo o duro inverno me colocou em uma prova de fogo. A neve exigia calçados impermeáveis para qualquer saída. As três camadas de roupa também eram novidade. Muito bota e tira para quem estava acostumado a andar por aí com sandálias, bermuda e camiseta. No começo era chato, mas em algum momento virou hábito. Só não me conformo em ter que vestir tanta coisa para ir ali na padaria. Me parece muito para comprar cinco pães.

Entendi também a importância do aquecedor dentro de casa. Dos modelos mais antigos aos mais novos, todos pedem uma regulagem e, dividindo casa, nem sempre dá para entrar em acordo. Alguns sofrem mais do que outros com as baixas temperaturas. Logo eu que nunca curti ar-condicionado via a necessidade de algum aparato para combater o clima. A experiência em viagens me havia ensinado que o corpo, eventualmente, se adapta. E foi justamente o que aconteceu.

É importante ressaltar que em Ushuaia a mudança de estações se sente um pouco mais. Cheguei no fim de um verão, vi o outono, sofri com o inverno e logo celebrei com o começo de uma primavara. Em boa parte do ano não é necessário sair por aí com tantas camadas ou com calçados impermeáveis pela cidade. Ver tanto céu nublado quando cheguei me jogou para baixo, mas passei a valorizar mais os dias ensolarados de céu azul, tão comuns no meu lugar de origem. Os tempos de luz de dia também são outros. Aqui sim se sente os solstícios de verão e de inverno. Se eu reclamo das seis horas de luz nas loites mais longas do fim de junho, solto fogos com as noites mais curtas do início do verão, quando o sol parece não querer se despedir.

No mais, sigo acompanhando futebol pela televisão, leio notícias, escrevo, vejo meus amigos, tomo cerveja, cozinho (isso também entraria no hall de ‘diferente’ haha), limpo a casa, trabalho. Muitas das coisas que faço já fazia antes. Mudou o lugar, mudaram as pessoas. A vida segue. Se antes eu podia ir à praia, agora posso ir para a montanha. O fim do mundo acabou sendo o começo de muitas coisas para mim, mas a vida da gente está recheada de começos e fins em qualquer combinação de longitude e latitude.

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Hailton Andrade

Jornalista e mochileiro. Fracassei ao tentar uma volta ao mundo e não lamento. Amarrei meus cadarços em 19 países e na Antártida. Moro no Fim do Mundo